Greve, revolução, reivindicação, revolta. Possivelmente essas foram as palavras mais ouvidas na concentração da seleção francesa no mundial da África do Sul, em 2010. Insatisfeitos com os métodos autoritários do treinador Raymond Domenech, os jogadores, liderados por Patrice Evra, armaram uma verdadeira greve e se recusaram a treinar depois que o atacante Nicolas Anelka fora mandado de volta à Paris por conta de uma discussão com o treinador. Resultado da confusão: crise, seleção eliminada de forma vergonhosa e intervenção do Estado que, na pessoa da Ministra dos Esportes, Mme Roselyn Bachelot exigiu dos seus atletas maior respeito para com a imagem do país no exterior. Mas, essa não foi a primeira vez que os bleus colocaram em prática os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade numa Copa do Mundo.
Durante as décadas de 1960 e 1970 alguns países da América Latina sofreram com governos totalitários. A Argentina foi um deles. Em 1976, o general Jorge Rafael Videla chegaou ao poder graças à um golpe militar que tirou da presidência Isabel Perón e instalou no país uma violenta ditadura durante sete anos. Assim como em todo regime ditatorial, os militares perseguiram e oprimiram seus opositores, submetendo-os aos mais cruéis métodos de tortura. A maior parte dos "subversivos" foi eliminada por grupos de extermínio e estima-se em mais de 20.000 o número de mortos ou desaparecidos durante o período que ficou conhecido como
Guerra Suja.
Logo oficial da Copa de 78 e cartaz de protesto do COBA ("Não ao futebol entre os campos de concentração")No entanto, cerca de dez anos antes, a FIFA já havia escolhido a Argentina como sede do mundial de 1978 e o presidente João Havelange não voltou atrás na decisão. No mundo inteiro surgiram protestos contra a realização do evento e na França, argentinos exilados se uniram com franceses para criar o Comitê pelo Boicote da Organização da Copa do Mundo de Futebol (COBA). Diariamente um intenso debate ocupava as páginas dos jornais
Le Monde e
Figaro. Em pouco tempo, artistas e intelectuais como Alain Touraine, Jean Paul Sartre, Louis Aragon e Roland Barthes aderiram ao movimento que tentava sensibilizar as federações nacionais e convencer a FIFA de que a Copa do Mundo não poderia ser disputada num país que desrespeitava os direitos humanos. Junto com a Anistia Internacional o COBA redigiu um documento enumerando as razões do boicote.
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A equipe da França, qualificada no dia 16 de novembro último, jogará a 800 metros do mais terrível centro de torturas do país? Esta é, de fato, a distância que separa o estádio do River Plate, onde devem se realizar as principais partidas da Copa do Mundo, da Escuela de Mecanica de la Armada, sede do sinistro Grupo de Tareas 33, verdadeira Gestapo argentina (...) É também da Escuela de Mecanica de onde decolam os helicópteros que vão lançar os corpos mutilados das vítimas no Rio da Prata ou no Atlântico."No mapa vê-se a proximidade entre a ESMA (A) e o Estádio Monumental de Nuñez (B) Mas, apesar de todos os protestos, os países classificados confirmaram suas presenças e o mundial foi realizado. No embarque da seleção francesa à Argentina, membros do COBA ainda tentaram sequestrar o treinador dos
bleus, Michel Hidalgo, mas fracassaram. Os apelos do movimento atingiram alguns jogadores como o holandês Van Hanegem e o meiocampista alemão Paul Breitner, que se recusaram a jogar a Copa na Argentina. Por muito tempo acreditou-se que o craque Johan Cruyff também teria boicotado o mundial. Mas, recentemente, o próprio jogador desmentiu essa versão e revelou que teria sofrido uma tentativa de sequestro, em 1977, que o havia abalado muito.
Assim como aconteceu na Itália fascista de 1934, a Copa da Argentina foi marcada por escândalos de arbitragem e manifestações contra o regime ditatorial. Além disso, há quem diga que as comemorações depois do controverso seis a zero da seleção alviceleste sobre o Peru serviram para abafar os gritos de protestos das Mães da Praça de Maio, que buscavam informações sobre seus filhos desaparecidos. E na entrega das medalhas após a partida final, a seleção holandesa, vice-campeã, protagonizou um último gesto de repúdio ao governo militar, dando as costas ao general Jorge Rafael Videla.